quarta-feira, 9 de junho de 2021

Sobre o vazio

O vazio, a pausa, o espaço em branco é fundamental como oposição ao preenchimento. É, por exemplo, praticamente impossível retirar significado de cada objeto numa sala em que estes estejam completamente amontoados e dispostos aleatoriamente - numa sala em que não haja espaço vazio, espaço esse que permitiria interpretar esses objetos individualmente -. O mesmo poderemos observar com a música: uma música sem pausas - espaços vazios - seria apenas um conjunto de notas sem significado, não seria música, como a conhecemos, seria apenas um barulho contínuo que por ser contínuo poderia tornar-se no próprio silêncio. O preenchimento ganha então significado com o vazio. 

"Even if we don’t realize it, we often have to come to terms with the mystery of emptiness. When we listen to music and understand the importance of the rests, the moments of silence. When we design an object and measure the breadth of the gestures of those who will use it. When we read a book and immerse ourselves in the harmony of the empty space that surrounds the text. (...)"  - (TRIMARCHI, Mario (2020), In Praise of Emptiness)

Apesar da grande importância que o vazio possui, vivemos numa sociedade moderna ocidental em que possuir, pelo objetivo de acumulação ou de elevação social, tem uma enorme relevância. A importância do espaço vazio, neste contexto, dilui-se, deixando mesmo de ter "espaço": o espaço vazio é algo que não está acabado, que precisa de alguma coisa, que está incompleto. O vazio não é visto, então, como algo a estimar ou valorizar, é visto como algo a preencher. O preenchimento sobrepõem-se ao vazio. As coisas sobrepõem-se ao nada. 

Este vício de possuir e de preencher, intrínseco à sociedade ocidental, vem de mãos dadas ao capitalismo e consequentemente ao marketing e à publicidade. Comprar um certo objeto vem associado a determinados sentimentos e estilos de vida. Um objeto nunca é comprado apenas por aquilo que ele é, mas sim, sempre em comunhão com aquilo que ele significa ou poderá significar - que tem haver com uma narrativa criada à volta desse objeto.

“A montra, o anúncio publicitário, a firma, a produtora e a marca, que desempenha aqui papel essencial, impõe a visão coerente, coletiva, de uma espécie de totalidade quase indissociável, de cadeia que deixa aparecer como série organizada de objetos simples e se manifesta como encadeamento de significantes, na medida em que se significam um ao outro como super-objeto mais complexo e arrastado o consumidor para uma série de motivações mais complexas." - (BAUDRILLARD, Jean (1995), A sociedade de consumo, pág. 17)

“Consumimos o real por antecipação ou retrospectivamente, de qualquer maneira, à distância, distância esta que é a do signo.” - (BAUDRILLARD, Jean (1995), A sociedade de consumo, pág. 22)

“É o seguinte o princípio da análise: nunca se consome o objeto em si (...) os objetos (...) manipulam-se sempre como signos que distinguem o indivíduo , quer filiando-o no próprio grupo tomado como referência ideal quer demarcando.o do respetivo grupo por referência a um grupo de estatuto superior” - (BAUDRILLARD, Jean (1995), A sociedade de consumo, pág. 60)
 
Em oposição a esta lógica de consumo na sociedade ocidental, a cultura Japonesa dá uma grande relevância ao vazio. O espaço que existe entre as coisas tem a mesma ou até mais importância que a própria coisa. Ma é um termo japonês que se refere precisamente ao espaço negativo – ao espaço que existe entre as coisas. Aliado a essa apreciação pelo vazio vem uma adoração pelas sombras. As sombras são de uma grande importância na cultura japonesa - as sombras de uma coisa têm tanta importância como a própria coisa, como tal, o espaço vazio tanto apreciado na cultura japonesa é preenchido também pelas sombras. 

“The Japanese culture of living tells us about the special focus on the ma, a word that indicates the empty space between two objects. Indeed, objects feel better when there is an exact space between them, that gap that allows their shadows never to touch.” (TRIMARCHI, Mario (2020), In Praise of Emptiness)

“For the beauty of the alcove is not the work of some clever device. An empty space is marked off with plain wood and plain walls, so that the light drawn into it forms dim shadows within emptiness”.  – (TANIZAKI, Junichiro (1977), In Praise of Shadows, pág. 20)

"(...) The Japanese are the ones who created the very minimal garden. They think that an empty garden is more likely to be enjoyed by people because it’s empty. So people who see the garden see themselves in this empty space and they are able to create their own story in this space." - (ANNETA, Suzi, In Praise of Emptiness: A Conversation with Kenya Hara)


Consequentemente, devido à grande relevância que o espaço vazio possui no Japão, cada objeto existente tem uma apreciação e importância acrescida. Enquanto os objetos na cultura ocidental ganham significados consoante conceitos criados artificialmente por uma sociedade consumista e capitalista, que por isso, podem ir variando, os objetos na cultura Japonesa ganham significados imediatos associados diretamente ao espaço em que se encontram - associados ao espaço que existe entre esse e o o objeto mais próximo, associados à luz e à sombra. O objeto ganha importância dentro de um contexto de arquitetura e de relação com a luz e sombra. 

“À nossa volta, existe hoje uma espécie de evidência fantástica do consumo e da abundância, criada pela multiplicação dos objetos. (...) os homens da opulência não se encontram rodeados, como sempre acontecera, por outros homens, mas mais por objetos.” – (BAUDRILLARD, Jean (1995), A sociedade de consumo, pág. 15) 
 

Como tal, essa apreciação e valorização dos objetos, leva a que, no Japão, quando os objetos principalmente de cerâmica se partem ou ficam lascados, em vez de serem substituídos por objetos novos, são retocados. Esse "defeito", que o objeto passa a ter, é valorizado e até acentuado. Por outro lado, no ocidente existe uma substituição rápida desses mesmos objetos - pratos e copos lascados, por exemplo, são rapidamente substituídos - (os objetos não têm associado um significado sentimental e único). 

“Para os japoneses uma taça ou uma jarra pode tornar-se mais bonita depois de partida e reparada. Tanto que têm uma tradição dedicada ao restauro de cerâmica, o kintsugi. O objetivo não é devolver o objeto ao seu estado imaculado - pelo contrário: as fissuras são realçadas com uma mistura de laque e ouro em pó. (...)" (MOURA, Catarina Lamelas (2019), Kintsugi e Wabi Sabi: a perfeita imperfeição dos japoneses)

“Lacquerware decorated in gold is not something to be seen in a brilliant light, to be taken in at a single glance; it should be left in the dark, a part here and a part there picked up by a faint light” – (TANIZAKI, Junichiro (1977), In Praise of Shadows, pág. 14)

Assim, no Japão, os objetos, ganham uma grande relevância principalmente devido ao vazio que possuem à sua volta, este vazio faz com que estes possam ser devidamente apreciados, faz com que estes se tornem realmente algo único e especial, digno de serem mantidos e retocados, e que vivem diretamente em comunhão com o espaço envolvente e não em comunhão com significados atribuídos por uma determinada marca ou campanha publicitária. 

Bibliografia

ANNETA, Suzi, In Praise of Emptiness: A Conversation with Kenya Hara, Disponível em: https://design-anthology.com/story/kenya-hara-conversation, data de consulta: 04-06-2021

BAUDRILLARD, Jean (1995), A sociedade de consumo, Lisboa: Edições 70

MOURA, Catarina Lamelas (2019), Kintsugi e Wabi Sabi: a perfeita imperfeição dos japoneses, Disponível em: https://www.publico.pt/2019/02/21/impar/noticia/kitsungi-wabi-sabi-conceitos-japoneses-aceitar-imperfeicao-1862448, data de consulta: 03-06-2021

TANIZAKI, Junichiro (1977), In Praise of Shadows, United States of America: Leete's Island Books

TRIMARCHI, Mario (2020), In Praise of Emptiness, Disponível em: https://www.internimagazine.com/features/opinions/mario-trimarchi-empty/, data de consulta: 03-06-2021



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