O mito da produtividade e a vergonha
do descanso sob capitalismo
Na minha opinião, um dos sintomas da alienação é o mito da
produtividade e a pressão do nosso sistema para perseguir esse ideal, que nos
leva a sentir vergonha e culpa quando não o conseguimos.
No nosso modelo de sociedade capitalista, o ideal que somos
ensinados a prioritizar é um de produtividade máxima, em que o nosso valor está
associado ao quão produtivos conseguimos ser. Comportamentos de “preguiça” e “procrastinação”
são frequentemente desprezados como se fossem o resultado da falta de esforço
ou capacidades de alguém. Porém, considero estes comportamentos como algo que,
precisamente, é um sintoma da enorme pressão que temos para estar sempre a
trabalhar e a atingir objetivos. Claro que, por vezes, é possível alguém se
entregar à preguiça apenas por irresponsabilidade individual, mas, muitas das
vezes, não será que tal apenas acontece porque o estilo de vida que temos nos
faz sentir constantemente cansados e dormentes? Ou a procrastinação, um tema
tão discutido atualmente, que pessoalmente vejo como um sintoma de diversas coisas
(como insegurança, medo de falhar, peso de pressões sociais, ansiedade, perfecionismo,
etc), mas não como um “defeito” ou alguma coisa pela qual se deva sentir culpa/vergonha.
Na verdade, acho que é quase inevitável cair nestes padrões de preguiça/procrastinação,
quando estamos constantemente a ser forçados a entregar tudo de nós a
instituições como o trabalho, a escola, etc.
Penso que estes hábitos de trabalho excessivos são
completamente anti-naturais para o ser humano – não é suposto que funcionemos
como máquinas, somos seres orgânicos que precisam de estar em contacto com o
mundo que os rodeia e consigo mesmos, algo muito dificultado pela mentalidade
de empreendorismo em que vivemos. E é exatamente neste ponto que a alienação se
manifesta – somos afastados da nossa verdadeira natureza para vivermos e operararmos
a um ritmo que simplesmente não é o nosso. Na verdade, somos mesmo ensinados a
fazê-lo, ao sermos incentivados desde pequenos a contrariar os nossos instintos
e os nossos sentimentos: quando nos sentimos cansados, temos de nos focar, e forçar
a dar o “nosso melhor” (se é que isso é possível num estado de constante baixa
energia), e enquanto que esta atitude de ignorar o que sentimos e os sinais do
nosso corpo é glorificada, há questões preocupantes que são normalizadas, como dormir
poucas horas (é raro encontrar-nos com alguém qu durma 7h/8h/9h, o suposto para
o ser humano), trabalhar o dia inteiro com poucas pausas e o ano inteiro com
poucas férias, fazer horas extraordinárias, diretas de trabalho, etc. O que é
que acontece ao nosso tempo de relaxamento e reconexão connosco mesmos? Quando
é que é suposto sentarmo-nos com os nossos pensamentos, ou simplesmente não pensarmos
em nada e mimarmo-nos, e sentirmos prazer sem nenhuma culpa associada? Mesmo o
tempo “livre” é contado e calculado, e nem sequer é vivido plenamente muitas
das vezes, por estarmos com a cabeça na tarefa anterior ou na seguinte. Mesmo a
filosofia de “mindfulness” que recentemente se popularizou, já foi alvo de
acusações de ser usada como um método para, na verdade, nos tornar mais
produtivos – ao melhorar o nosso estado, melhoramos a nossa performance.
Porém, não acho, de todo, que este fenómeno seja por acaso. Sob
os regimes neo-liberais que vivemos, somos incentivados a seguir estes padrões,
de maneiras subtis que nos levam inconscientemente a sentir auto-satisfação e
recompensa – levam-nos a glorificar uma atitude de constante esforço e produtividade
como algo benéfico para nós, que dita o nosso valor, aquilo que merecemos ter e
aquilo que realmente acabamos por ter. Contudo, isto serve apenas para que haja
em nós um desejo voluntário de trabalhar mais e assim, produzir mais – é uma
arma do sistema para nos transformar em máquinas de produção e labor. Para além
disso, se passarmos o dia inteiro na escola/trabalho, chegamos a casa exaustos
e procuramos satisfação/descanso fáceis em entretenimentos vazio; não temos tempo
para fazer tudo o que precisamos então substituímos isso com a compra (por exemplo
encomendamos refeições em vez de cozinhar, compramos comida em vez de a produzir nas nossas casas,
compramos roupa nova em vez de perdermos algum tempo a arranjar peças antigas e
estragadas e, no limite, em vez de cuidarmos das nossas casas e da sua limpeza
contratamos alguém para o fazer, ou em vez de acompanharmos mais os nossos
filhos, recorremos a outros profissionais para tal). Comodificamos a nossa existência
porque, ao não termos nem tempo nem energia, não temos opção – e isto alimenta
o sistema e cria relações de dependência entre o individuo e o sistema, que passam
a alimentar-se um ao outro. Quando passamos a nossa vida a trabalhar, desrespeitamos
os nossos ritmos naturais, esquecemo-nos de existir como seres humanos e
negligenciamos as nossas tendências/talentos, como a criatividade, a empatia e
relação com o próximo, a imaginação, o idealismo, o desejo de mudança – ficamos
presos numa hamster wheel ao invés de evoluirmos para uma versão mais
conectada e evoluída de nós mesmos, enquanto indivíduos e espécie.
É por isso que acho que é fundamental reavaliarmos os nossos
valores e as nossas prioridades, e a pressão que exercemos em nós mesmos e nos
outros. Acredito que toda a mudança política começa pela mudança interior/individual,
e por isso é que acho tão importante desconstruirmos este ideal de
produtividade que nos foi imposto, e libertarmo-nos da culpa e vergonha que
costumamos sentir quando precisamos de parar, de descansar, de nos dedicar a
coisas que nos tragam prazer e um senso de propósito maior.
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